quinta-feira, 20 de março de 2014



NINFOMANÍACA

         Quase 40 anos atrás, jovem analista, cuidei de um hipocondríaco delirante. Ao longo do tratamento, eu sentia uma certa admiração pela coragem de meu paciente. Sem parar, sem recuar, sem hesitar diante de inúmeros incômodos, ele procurava algo que acreditava estar no âmago de seu próprio corpo; se ele encontrasse esse “algo”, a verdade de seu ser seria então revelada – a ele mesmo, a mim e ao mundo.

         Por sorte (dele e minha) ele se entregava menos a operações invasivas do que endoscopias e radiografias; dizia que procurava uma mancha, que os médicos não viam, mas que “estava lá”.

         Essas investigações pareciam ser apenas mais um momento numa longa história; nossa cultura sempre tentou encontrar, nos corpos, o lugar onde se esconderia a alma – com pesquisas anatômicas ou inventando disciplinas e práticas que querem dobrar o corpo e obrigá-lo a cuspir nossa verdade.

         A privação dos ascéticos, que mortificam os sentidos; o isolamento dos anacoretas, que fogem de qualquer comércio social; a imobilidade dos estilitas, que passavam a vida no alto de uma coluna; a penitência dos que guardam jejum; a dor dos que se açoitam impiedosamente: são esforços para levar o corpo a mostrar a alma.

         É como se existisse, em nossa cultura, uma raiva contra o corpo pelo tanto que ele mentiria, que ele nos afastaria de nossa verdade.

         De saco para mala: o primeiro roqueiro a destruir sua guitarra foi Pete Townshend, do The Who. A coisa virou moda. Mas destruíam seu instrumento por convicção (e não só para tirar uma foto) destruíam por quê? Talvez a destruição fosse o jeito de forçar o instrumento a tocar a música que eles imaginavam, que eles queriam, mas que estava além dos limites deles e de sua guitarra.

         Pois bem, alguns humanos se relacionam com seu corpo como o roqueiro com a guitarra que ele destrói: eles estão dispostos a submeter seu corpo a qualquer prova que toque a música esperada.

         Pensei nessas procuras espirituais e musicais quando assisti “Ninfomaníaca – Volume 1”, de Lars Von Trier. Esperava que o “Volume 2” me desapontasse. Não tenho simpatia por Von Trier; não gostei de Dogville (sobretudo por causa das provocações inúteis às quais o diretor recorreu no lançamento), e me desgostaram as besteiras que Von Trier falou sobre Hitler, no último festival de Cannes. Mas confesso: amei “Melancolia”, e “Ninfomania 1 e 2” é um dos filmes mais tocantes e notáveis que eu vi na última década – além de ser uma apresentação terrivelmente fidedigna de uma experiência do sexo, que pode parecer extrema, mas não é rara. Alguns pontos (sem spoilers):

    1)    Joe, a protagonista, se define como ninfomaníaca. É um jeito de não se esconder atrás de uma patologia ou de um vício, por exemplo. Concordo com ela, mas cuidado, a hipocrisia social vai longe e “ninfomania” tampouco é uma categoria inocente. É útil ler o excelente livro de Carol Groneman, “Ninfomania” (Imago).

    2)    Se o sexo for apenas uma procura de prazeres, ele não será mais relevante que a escolha de um bom vinho ou de uma fruta madura. A dimensão trágica e espiritual do sexo aparece quando ele nos domina como um imperativo incansável que exige sacrifício e risco. O psicanalista Jacques Lacan dizia que o superego é uma ordem irresistível que nos manda gozar. Se, por qualquer razão, você estiver interessado em entender o que ele queria dizer com isso, não perca “Ninfomaníaca”.

   3)    Num momento do filme, Joe perde e quer reencontrar sua capacidade de ter orgasmos, mas cuidado: o gozo que o sexo exige de nós (e dela) não se confunde com o orgasmo. Ao contrário, para alguns (como o filme também mostra), o orgasmo estragaria o gozo.

   4)    Os grandes libertinos dos séculos 17 e 18 não procuravam prazeres (nem orgasmos - que eles estavam sempre postergando). A protagonista de Von Trier, como uma heroína de Sade, tampouco procura o prazer. Até a masturbação, para ela, é quase penosa – mais parecida com um exercício espiritual do que com uma brincadeira aprazível.

   5)    O tema de “Ninfomaníaca” é soturno, mas o diálogo entre os dois (extraordinários) atores do filme respira uma inteligência rara e especialmente bem-vinda nestes dias, em que a maioria prefere fugir do sexo pela zombaria ou pelo esculacho.

    6)    Só para concluir: sexo não é diversão. É para gente grande. 


 Fonte: Contardo Calligares, psicanalista; Folha da Tarde. Escreve`às quintas 




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